
Artigo de opinião – A Filosofia da Alimentação e os Seus Dilemas
Nicola Piras, Centre for Ethics, Politics, and Society, University of Minho ⠿ 10-04-2025 10:00
A filosofia, ao longo da sua história, raramente se ocupou da alimentação, apesar de esta desempenhar um papel único na definição das culturas humanas e das identidades pessoais, para além de ser o elemento natural de sustento da nossa espécie, assim como de outras.
Nos últimos anos, contudo, a filosofia da alimentação adquiriu um estatuto disciplinar consolidado, desenvolvendo uma metodologia própria que combina questões teóricas e conceptuais com dimensões éticas e políticas. A centralidade da alimentação na nossa vida não pode deixar de levantar importantes questões normativas, que merecem ser debatidas filosoficamente. Estas questões vão desde a responsabilidade perante a fome no mundo até à admissibilidade de políticas que promovem dietas mais saudáveis, como os impostos sobre o açúcar, passando pela licitude do consumo de outros animais não humanos. No entanto, estas questões políticas estão intimamente ligadas a perguntas de natureza mais estritamente teórica. Por exemplo, o que é a fome e como deve ser definida (Borghini & Serpico, 2021)? Que peso devem ter considerações culturais e sociais na criação da chamada food aid (Pogge, 2016)? O que torna um alimento saudável e quais são as autoridades epistémicas relevantes (Piras, 2024)?
Os grandes desafios do nosso tempo, como as alterações climáticas, obrigam-nos a repensar a identidade dos alimentos. Por exemplo, como podemos preservar a autenticidade de certos alimentos se os seus ingredientes ou métodos de produção tiverem de mudar para se adaptarem às novas condições ambientais? Como podemos determinar se um novel food, como a carne cultivada em laboratório, é realmente carne (Piras, no prelo)? A metafísica e a ontologia, ao refletirem sobre o conceito de identidade, combinadas com a atenção aos valores culturais da alimentação e ao papel das partes interessadas (stakeholders), podem fornecer ferramentas úteis para enfrentar estas complexas questões (ver, por exemplo, Heldke, 2003; Borghini et al., 2022).
Outro dos temas centrais para aqueles que trabalham sobre alimentação é o desperdício alimentar, que, tal como outras questões, tem recebido pouco interesse filosófico até agora. No entanto, como muitos sabem, uma grande parte dos alimentos é desperdiçada diariamente – a FAO estima cerca de 1/3 de toda a produção alimentar – contribuindo para as alterações climáticas e tornando os nossos sistemas alimentares menos resilientes. O contributo filosófico pode ser determinante para navegar neste conjunto de questões e fornecer ferramentas úteis a decisores políticos, académicos e stakeholders que se deparam com este enorme problema. É verdade que responder a perguntas como "o que é o desperdício alimentar?" e "isto é desperdício alimentar?" pode parecer exigir apenas conhecimentos básicos. No entanto, estas perguntas escondem uma série de complexidades que merecem uma análise filosófica mais aprofundada: a destruição de alimentos para aumentar o seu valor de mercado deve ser considerada desperdício? O sobreconsumo deve fazer parte da definição de desperdício alimentar? Que propriedades são relevantes para um observador quando classifica um alimento como desperdiçado? São intrínsecas ou relacionais?
Para oferecer respostas coerentes e fundamentadas a estas e outras questões relacionadas, foi recentemente lançado um Exploratory Project, financiado pela FCT, liderado pelo autor deste artigo.
Um ponto de referência internacional para a filosofia da alimentação é o centro de investigação Culinary Mind, fundado em 2017, que liga investigadores de todo o mundo que exploram a alimentação através das lentes filosóficas da ontologia, metafísica e ética aplicada.[1]
Bibliografia
Borghini, A., Piras, N., & Serini, B. (2022). Eating local: A philosophical toolbox. The Philosophical Quarterly, 72(3), 527–551. https://doi.org/10.1093/pq/pqab039
Borghini, A., & Serpico, D. (Eds.). (2021). Understanding hunger: Philosophical, psychological, and medical perspectives [Edição especial]. Topoi, 40(3).
Heldke, L. (2003). Exotic appetites: Ruminations of a food adventurer. Routledge.
Piras, N. (2024). Using social ontology for improving healthy eating policy. Ethical Perspectives, 31(1), 29–44. https://doi.org/10.2143/EP.31.1.3293469
Piras, N. (no prelo). An ontological guide to make novel foods familiar. Philosophical Inquiries.
Pogge, T. (2016). The hunger games. Food Ethics, 1(1), 9–27. https://doi.org/10.1007/s41055-016-0006-9
[1] Este artigo nasce do longo diálogo intelectual com Andrea Borghini e Beatrice Serini sobre a natureza, os métodos e os temas da filosofia da alimentação. Algumas dessas reflexões já foram publicadas no artigo coletivo Il cibo come campo di ricerca in filosofia, que apareceu em La meraviglia del possibile 3 (2022): 39-45. Agradeço a ambos pelo confronto estimulante e por me terem dado a oportunidade de desenvolver e divulgar aqui algumas das nossas ideias, amadurecidas em diversas ocasiões de discussão.
Atualizado a 10-04-2025 10:00