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O Saara e aquilo que não se rouba










 

Mas o que me conduz a escrever as presentes mal-traçadas não é o fato de ter estado no Saara. Isso qualquer um pode (e se puder, deve). É só marcar com um guia, subir num jipe “todo terreno”, entrar no deserto, enterrar os pés nas dunas, montar no camelo e bater umas fotos. Serão histórias para uma vida.

 

O que me leva mesmo a calejar os dedos com essas palavras é que, querendo ou não, junto com poucos e bons amigos, tive uma experiência diferenciada no Saara, onde conheci seres humanos exemplares. Esqueçam os monumentos. Nada nas viagens é mais importante do que conhecer seres humanos exemplares.

 






 

Sob um céu onde não cabem mais estrelas, os Berberes cantam iluminados somente pelas luzes do fogo e da lua. Versam sobre amor, companheirismo e sobre o deserto. Eles são homens do Saara. Ali nasceram e ali querem estar. Caminham a passos largos. Tratam dos dromedários e sorriem, porque não é preciso muito para sorrir.

 

Os homens do Saara têm mãos fortes, fala pausada e olhar sincero. Com o pouco que falam, dizem muito. Ensinam a entender o vento, as dunas e o sol. Explicam que para um verdadeiro nômade sobreviver no deserto, ele precisa de nada mais do que chá e tâmaras. Somente a falta de chuva preocupa-os e faz com que eles abandonem sua “casa” para agruparem-se em vilas.

 






 

Lahcen Alloud, Berbere que recebeu a mim e meus amigos com seu grupo, explica que os nômades do Saara Marroquino foram prejudicados com uma recente obra do Governo: a construção de uma represa nos arredores da cidade de Ouarzazate. Com isso, o rio Dadès não alcança mais o deserto, o que deixa a população nômade completamente dependente das irregulares chuvas.

 

Surge o óbvio questionamento: então os nômades são contra esse Governo do Marrocos? “Não. A represa tinha que ser construída porque as cidades estão crescendo. A população urbana precisa de água potável e eletricidade”, diz Lahcen, deixando no ar a dúvida se aquela resposta é reflexo de um completo afastamento das discussões políticas ou se é um consciente posicionamento de alteridade. “Quando chove, imediatamente, todas as famílias Berberes voltam para o deserto, porque esse é nosso lugar”, conclui.

 






 

Porém, alguns Berberes não conseguem adaptar-se à vida na vilas e relutam para sair do deserto, mesmo que por pouco tempo. É o caso de Ami, irmão de Lahcen. Conheci sua tenda, montada por entre dunas baixas e algumas árvores secas. Ótima localização, segundo as palavras do próprio Ami: “Aqui eu estou a duas horas de um poço pra “lá”, a uma hora de um poço pro “outro lado” e a três horas de um poço pra “lá”. Não faço idéia do que isso quer dizer.

 






 

Caminhando pelo Saara com Lahcen, aprendi o significado de algumas palavras árabes, como Bahía, que pra eles quer dizer “Maravilhoso” ou “Fantástico”. Então eu disse que com aquelas palavras em árabe, ele já sabia como era a minha terra, tão fantástica quanto a dele. Daí, falei um pouco sobre a relação da Bahia com a África, da religião, dos escravos e terminei citando um poema que critica a escravidão, não lembro o autor, cujos versos dizem algo parecido com “Primeiro, me roubaram da África. Depois, roubaram a África de mim”. Foi quando Lahcen parou, respirou um pouco e adotando um outro ponto de vista para entender aquilo, disse: “Essa é uma frase forte mas…olhe em volta, Victor. Você está no Saara. Talvez nunca mais volte aqui. Mas você acha mesmo possível que roubem isso de você?”.

 

Então, só se ouviu o vento.

 

Texto e Fotografia: Victor Uchôa
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